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Foto do escritorFilipa Melo

A invenção da Europa Central




Território privilegiado do imaginário de Claudio Magris, a Europa Central, cujas fronteiras continuam vagas, mutáveis e indefiníveis, poderá ser apenas uma nostalgia do passado ou a fonte para uma outra e nova percepção da Europa.


Noite de solstício de verão de 2007, Pico de Cankar, colina de Rožnik, junto à capital eslovena, Lubliana. Há gulache, cerveja e slivovica (aguardente), servidos em pratos e copos de papel. Há gargalhadas estrepitosas, uma corrente de euforia prazenteira entre os convidados espalhados pelas mesas e bancos de madeira em torno da cabana de Ivan Cankar. Entre 1910 e 1917, Cankar (1876-1918), o maior poeta esloveno, comparado a Kafka ou a Joyce, viveu aqui. Por isso se celebra todos os anos nesta colina a entrega do Kresnic, o mais importante prémio literário esloveno. Durante a cerimónia, honra-se também Kresnic, divindade eslava associada ao fogo e ao solstício, um camponês que se tornou rei, com poderes mágicos, cabelo e braços e mãos de fogo e doze trabalhos cumpridos, como Hércules. Entre o fogo de artifício e as danças, que recriam encenações e coreografias pagãs milenares em homenagem à natureza, pergunto a um jovem escritor esloveno: «Tudo isto pela literatura? Toda esta festa? Toda esta alegria?» Ele levanta a sua caneca, e grita: «Pela literatura! Pela sobrevivência da Eslovénia!» Todos rimos e brindamos. Mais tarde, em surdina, diz-me: «Porque é que achas que nunca passamos do fundo da tabela do campeonato de futebol europeu?»

Será talvez demasiado difícil para um português imaginar um país com cerca de dois milhões de habitantes, constituído graças à tradução da Bíblia para a sua língua (em 1551, pelo reformador protestante Primož Trubar), onde os monumentos públicos e a toponímia homenageiam sobretudo ficcionistas, poetas, gramáticos, ensaístas e dramaturgos, um país com um dos mais altos níveis de literacia de todo o mundo e onde a indústria cultural é mais importante do que a agrícola. Integrada na União Europeia em 2004, a Eslovénia foi durante anos a menina dos olhos de Tito, isto é, a única ponte de contacto do leste comunista com o ocidente europeu, simbolizada no cosmopolitismo de Trieste, cidade-natal de Claudio Magris.

Ao longo da história, o povo do território que é hoje a Eslovénia (com fronteira com quatro países e o mar Adriático) foi subjugado pelo Império Romano, pelo Império Bizantino, pela República de Veneza, pelo Ducado da Carantania (o primeiro estado eslavo), pelo Sacro-Império Romano-Germânico dos Habsburgo, pelos Impérios Austríaco e Austro-Húngaro, pela ocupação nazi, depois pela integração no Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos, por fim na República Socialista Federalista da Jugoslávia. Em 1991, conquistou por fim a sua independência. O escritor esloveno Drago Jančar explica: «À semelhança de outras nações centro-europeias, na ausência histórica de qualquer poder político real, a identidade da pequena nação eslovena afirmou-se através da cultura e da literatura. Ou seja, fê-lo através da língua que os eslovenos salvaguardaram ao longo dos séculos, como os judeus fizeram com a sua Tora.» O exemplo da Eslovénia traduz uma força escondida no centro da Europa e identificada por Milan Kundera: «A Europa Central não é um estado. É uma cultura ou um destino. As suas fronteiras são imaginárias.»

Europa Central, Mitteleuropa, Europa de Leste, Zwischeneuropa, Leste europeu, Zentraleuropa, Ásia Ocidental (Brodsky), Südosteuropa, Europa Central de Leste… O que é? Uma cultura tornada comum entre povos pela monarquia Habsburgo? Uma área relativamente barroca que se estende de Triste até ao Báltico? Nações do centro da Europa que estiveram sob os domínios otomano, austro-húngaro, alemão e soviético? Uma entidade política e geográfica cujas coordenadas fronteiriças seriam, a oeste a atual Suíça, a leste a Ucrânia, a norte os Países Bálticos, a sul a Croácia? A comunidade de pessoas que, ao tempo da Primeira Guerra, viviam «entre os alemães e os russos» (Thomas G. Masaryk)? Os países que, em 1915, o teólogo evangélico alemão Friedrich Naumann quis integrar num sonho de pan-germanismo e liberalismo imperial chamado Mittleuropa, depois transformado em Lebensraum, pesadelo de expansionismo territorial nazi? O espaço controlado pelos partidos comunistas ou com uma relação política, militar e ideológica com a URSS até ao seu término? Um Leste abandonado? Os sítios onde o Leste e o Ocidente colidem? Ou, muito simplesmente, todos os sítios europeus onde se come strudel?

Aqui, preferiremos identificar a Europa Central tal como ela surge como utopia num livro-peregrinação extraordinário chamado Danúbio. Nele, Claudio Magris refere como este rio surge com frequência envolto num halo simbólico anti-alemão. Mas, relembra: «É o rio ao longo do qual se encontram, se cruzam e se misturam gentes diversas, em vez de ser, como o Reno, um mítico anjo tutelar da pureza da estirpe. É o rio de Viena, de Bratislava, de Budapeste, de Belgrado, da Dácia [atual Roménia], a faixa que atravessa e cinge, como o Oceano cingia o mundo grego, a Áustria dos Habsburgos, da qual o mito e a ideologia fizeram o símbolo de uma koinè múltipla e supranacional, o império cujo soberano se dirigia “aos meus povos” e cujo hino era cantado em onze línguas diferentes. O Danúbio é a Mitteleuropa alemano-magiar-eslavo-românico-judaica, polemicamente contraposta ao Reich, germânico, uma ecúmena “hinternacional”, como a celebrava em Praga Johannes Urzidil, um mundo “anterior às nações”.»

A discussão sobre a viabilidade e utilidade do termo e do conceito de Europa Central (criado pelos franceses nos anos vinte e propagado pelo jornal homónimo publicado pelo governo da Checoslováquia) começou nos anos 80, com a publicação dos textos The Tragedy of Central Europe, de Milan Kundera (New York Review of Books, abril 1984) e Does Central Europe exists?, de Timothy Garton Ash (New York Review of Books, outubro 1986), dos ensaios do checo Václav Havel (1936-2011) e do polaco Czesław Miłosz (1911-2004). Juntaram-se-lhe variadas abordagens, condensadas na plataforma Cross Currents, criada pelo departamento de Línguas e Literaturas Eslavas da Universidade de Michigan e ativa entre 1982 e 1993. As ideias então defendidas determinaram que o estudo académico da região se alargasse a mais do que «notas de rodapé da Sovietologia» (Garton Ash) e para lá dos condicionalismos de uma abordagem meramente histórica. Hoje, as perspectivas de Kundera, Ash ou Miłosz estarão desfasadas no tempo, urgente que é analisarem-se os efeitos do exacerbamento dos nacionalismos e da evocação das memórias nacionais após a queda do regime soviético e, sobretudo, avaliar a calamidade e as cicatrizes provocadas pela guerra servo-croata dos anos 90. Contudo, como defendeu a jornalista e ensaísta polaca Barbara Torunczyk, o debate dos anos 80 contém a essência da pesquisa do que une «um número de nações com histórias antigas e complexas, cujas aspirações à elevação a Estado e à independência política datam de tempos imemoriais».

No centro da discussão, subsiste a ideia de que, ainda que seja uma mera utopia ou uma invenção intelectual, uma certa forma de considerar a cultura e a história na Europa Central pode ser a chave para a sobrevivência da própria Europa: uma Europa bastião do humanismo universalista, aspiração colocada no centro do seu significado económico, social e político. A concretização de uma idealizada harmonia de povos diferentes, contra o bastião de Limes. Afinal, uma Europa a milhas de distância da presente Europa, onde a ignorância generalizada dos europeus ocidentais sobre o Leste europeu se traduz na forma bárbara como acolhem os seus imigrantes. Em Portugal, por exemplo, são todos metidos no mesmo saco (é frequente serem denominados indiscriminadamente como «ucranianos», ignorando-se a distinção básica entre o grupo dos eslavos – ucranianos, búlgaros, russos – e o grupo dos latinos – romenos e moldavos), recebidos como europeus de segunda classe, parentes pobres a quem se cede esmolas e trabalhos desqualificados. Pergunto-me até mesmo se será abordada nas escolas a memória do passado de ouro da Europa Central, situada na última fase do império dos Habsburgos, quando «o centro de gravidade vital» da civilização europeia se situava entre Viena ou Budapeste» (Kundera).

A época áurea da Europa Central (que, saliente-se, nunca foi uma «unidade desejada ou intencional») resultou de uma mescla entre culturas regionais, o melhor do iluminismo alemão e a cultura dos judeus asquenazes assimilados. Produziu símbolos maiores do interculturalismo produtivo. Dela herdámos, entre tantas outras coisas, a psicanálise, o lied, a música dodecafónica, a semiótica, a cultura dos cafés (e dos bolos com creme), as primeiras noções de união monetária ou de ecologismo, a filosofia polaca, a literatura vanguardista checa, a crítica e a teoria sociais húngaras, a poesia lírica austríaca, a valorização do multilinguismo, o dadaísmo de Tzara, o humor negro e o niilismo de Urmuz e…, e… E a nostalgia de toda esta riqueza que, hoje, nos faz sentir órfãos da modernidade e das suas promessas (Magris). Em Danúbio, Magris diz-nos que os grandes poetas da ironia vienense se alimentaram também da «brutalidade mascarada de bonomia» que fez de Viena o «baixo-ventre da História», uma «estação metereológica do fim do mundo» (Karl Kraus). Em frente da casa de Joseph Roth, Magris assegura-nos, por exemplo, que ninguém que ali morasse podia deixar de se tornar «especialista em melancolia, a nota dominante de Viena e da Mitteleuropa; uma tristeza de colégio e de quartel, a tristeza da simetria, da fugacidade e do desengano»: «Em Viena, temos a impressão de que se vive e sempre viveu no passado, cujas rugas escondem e protegem até a alegria.» Uma mescla de ocaso e de futuro.

Não podemos esquecer-nos de que, naquela mesma Europa Central onde ocorria uma explosão de génios intemporais, a taxa de iliteracia entre os húngaros era de três por cento e elevava-se para setenta a oitenta por cento nos países balcânicos. A transmissão das distintas tradições e culturas era, desde sempre, marcadamente oral. A abertura e assimilação dos judeus era uma simples brecha numa longa história de perseguição. O Império Austro-Húngaro tinha traços fortes de Cacânia. «Num estado [que não fora] guiado nem por um conceito claro, nem pela vontade criativa das pessoas, nem “pela associação livre de nações que poderia ter sido o seu esqueleto e revigorado os seus tecidos com o seu sangue” (Robert Musil), provavelmente o único conceito que [verdadeiramente] ganhou forma […] como um tumor, criado pela estruturas administrativas anónimas das duas cabeças do império, foi o antissemitismo» (Miłosz). «O nazismo é a inesquecível lição da perversão da presença alemã na Europa Central» (Magris).

Nos tais génios intemporais germinava já um pressentimento deste fim de festa, um desavisado prenúncio do tumor dos totalitarismos do século XX. Kundera enuncia-o: «Gustav Mahler escreveu uma canção de adeus a um mundo que estava a desaparecer. Musil, no Homem Sem Qualidades, fala de uma sociedade que, sem o saber, não tem futuro. Hermann Broch percepcionou a história contemporânea a partir da degradação dos valores. Kafka concebeu o mundo como um infinito labirinto burocrático, dentro do qual o homem está inexoravelmente perdido. O valente soldado Švejk de Jaroslav Hašek imita os cerimoniais do mundo à sua volta com tanto zelo que os transforma numa enorme gargalhada. […] Foi na Europa Central que irrompeu uma forma lúcida de cepticismo no meio da nossa era de ilusões. Este cepticismo nasce de uma experiência extremamente concentrada da história: assistimos ao colapso de um grande império ao longo do nosso século, ao acordar das nações, à democracia, ao fascismo, assistimos à ocupação nazi, à miragem do Socialismo, a deportações massivas, ao reino de terror estalinista e à sua queda, e, finalmente, assistimos à coisa mais importante de todas: à agonia do Ocidente nos nossos próprios países e perante os nossos olhos. […] A Europa Central representa o destino do Ocidente, na sua forma concentrada. […] E, no entanto, a Europa Central já não existe. Os três sábios de Ialta dividiram-na e condenaram-na à morte. Não ligaram mínima se era uma questão de alta cultura ou não.»

Winston Churchill disse um dia que «os Balcãs produzem mais história do que aquela que conseguem consumir localmente». E poderia ter dito «cultura» em vez de «história». Na verdade, os pequenos países do centro-europeu nunca se renderam aos seus opressores porque, como defendeu Robert W. Seton-Watson, «as culturas nacionais são virtualmente indestrutíveis». Alimentadas pelo passado, as fronteiras civilizacionais atravessaram os séculos, comprovando a efemeridade dos regimes políticos. Kundera afirmou-o numa entrevista conduzida por Finkielkraut: «Todo o homem sabe que é mortal, mas está totalmente convencido de que a sua nação possui uma espécie de vida eterna.» Acreditar na sobrevivência de uma língua, de uma literatura e de uma cultura tornou-se o principal motor de resistência. Os pequenos países do centro-europeu engrandeceram graças a uma vida espiritual autónoma, que fez a história perder, afinal, o seu valor e conferiu um valor transcendente à arte. Permanentes vítimas de opressão, as literaturas centro-europeias desafiam os limites dos estudos de literatura comparada, mas constituem um património que pertence, hoje, a toda a Europa («há várias literaturas europeias, mas só uma literatura europeia», defende Kundera). Ali, a força da cultura, nascida da ruptura entre o indíviduo e a realidade, simboliza uma recusa da política e a exigência de valores e de sentido.

Czesław Miłosz escreveu em 1986: «A Europa Central parece existir apenas na cabeça de alguns intelectuais. Contudo, o passado desta área — um passado comum apesar da multiplicidade de línguas e nacionalidades — está sempre presente ali e é bastante real na arquitetura das cidades, nas tradições das universidades e na obra dos poetas. O próprio presente não consegue escapar a sinais que indicam o factor comum que sublinha a diversidade. Quando reflito sobre obras escritas hoje em checo ou polaco, húngaro ou estónio, lituano ou servo-croata, descubro um tom e uma sensibilidade que não encontro em mais lado nenhum, nas literaturas europeia ocidental, americana ou russa.» O escritor jugoslavo-sérvio Danilo Kiš (1935-1989) lembrou que, durante o domínio soviético, pertencer à cultura centro-europeia, identificar-se como tal, foi uma forma de dissidência que conduziu ao exílio (Miłosz, Kundera), à marginalidade, à publicação em samizdat (Konrád) ou à prisão (Havel). Todavia, esta idealização do Ocidente como pedestal da cultura e da civilização nunca produziu imitações, antes criações autónomas, profundamente originais. «A cultura europeia de leste orienta-se pelo ocidente, enquanto a nossa vida é modelada pelo Leste. […] Esta dualidade, este estar-entre, caracteriza cada um dos nossos movimentos, das nossas reações, e é notório nos livros que escrevemos», defende o húngaro Péter Esterházy (n. 1950).

Segundo Miłosz, na literatura ocidental, «o tempo é neutro, não tem cor, não tem peso, flui sem ziguezagues, curvas súbitas ou quedas de água (cataratas)». Na literatura centro-europeia, pelo contrário, ele é «intenso, espasmódico, cheio de surpresas, […], praticamente um participante na história»: «Isto acontece porque o tempo é associado ao perigo que ameaça a existência da comunidade nacional à qual o escritor pertence.» Nesta associação da história a uma ameaça, os centro-europeus aproximam-se da identidade sempre em risco experienciada pelos judeus europeus, para os quais existir é ter sempre a mala à porta e, lá dentro, só é possível arrumar o património imaterial: a Tora, o hebraico, o saber, a literatura — ser judeu é um eterno recomeço. Como a marca de um sapato de Ahasverus, o mítico judeu errante, conservada em Ulm até ao século XVII, talvez nasça ali alguma raiz da sensação de lentidão e de tempo suspenso que se entrevê em praticamente toda a literatura centro-europeia e a insistência daqueles povos na cultura como algo espiritual, metafísico, mas que resiste e deixa traços reais na paisagem. A «consciência da forma é uma característica partilhada por todos os escritores da Europa Central, forma como desejo de dar um sentido à vida e à ambiguidade metafísica, forma como possibilidade de escolha, forma que é uma tentativa de, no meio do caos à nossa volta, localizarmos pontos de fulcros como os de Arquimedes (“Dêem-me uma alavanca suficientemente longa e um fulcro onde a apoiar, e eu farei mover o mundo”), forma que é oposta às desordens da barbárie e à irracional arbitrariedade dos instintos» (Danilo Kiš). Claudio Magris exemplifica-o de outro modo: «No cadastro [de Grillparzer e de Kafka], a vida mostra toda a sua maldade; quem as sofre e regista pode atirar à cara da vida esse protocolo da sua inconveniência e por isso dominá-la, olhando-a de cima para baixo, como o reitor que dá a sua nota ao último da turma.»

A ideia é recorrente e tão romantizada como a associação dos centro-europeus à figura dos rebeldes hajduks. Dominados durante séculos, forçados a várias formas de exílio interior e de gueto, os centro-europeus terão sido impulsionados para a coragem e para a procura da verdade em todas as atividades humanas, incluindo a arte (Milan Jugman). A transmissão de traumas entre gerações levou a que esta ideia se transformasse numa metáfora com existência interna, uma arma de resistência perante o quotidiano opressivo. «A nossa literatura não procura alterar a realidade (sendo bastante resignada, neste aspecto), mas, sim, ajudar a realidade a sobreviver», sustentou o ensaísta húngaro Peter Balassa. Referindo que Miłosz terá dito um dia que «os escritores ocidentais nunca levaram suficientes pontapés no rabo», Péter Esterházy acrescentou: «De acordo com este aforismo, (na nossa disfarçada luta por fazer o Ocidente reconhecer os nossos distintivos valores, forças, estranhezas) o nosso trunfo é o facto de a nossa condição brutalizada nos ter aproximado da vida, tal como ela é.»

Derrubado o muro de Berlim (1989), os europeus olharam para o horizonte e uma parte da Europa eclipsara-se. Quantos nostálgicos europeus ocidentais ainda a procuram? Tomam-na por utopia ou ainda como realidade? Hoje, a Europa Central é como uma lenda transmitida oralmente (são quase inexistentes as traduções de autores centro-europeus no resto da Europa, sobretudo os contemporâneos). Um rumor. Tomar todos aqueles países como iguais, uniformizados pela cultura soviética ou, agora, pela globalização, é menosprezar a sua capacidade de resistência e a sua riqueza original. Mas, como entender ou valorizar o que não se conhece? Como fazer-se valorizar se não se existe? Milan Kundera fala em permanente e obstinado resgate da identidade por parte da Europa Central, algo que não ficaria mal também à Europa ocidental. Talvez assim dela pudéssemos herdar de facto noções como a importância da presença imanente da cultura e da história e do confronto de cada um com a sua própria história e a da comunidade à sua volta, na qual ele se integra ou se destaca, decidindo rejeitá-la. A herança da Europa Central poderá ser a utopia do europeu como alguém em permanente balanço de si mesmo, das fronteiras com os outros, com os valores éticos e com a história (a grande História e a história doméstica de culpas, glórias, arrependimentos ou lamentações). Afinal, como nos quis fazer saber Claudio Magris, descendo o rio Danúbio qual Ulisses europeu, «a vida, dizia Kierkgaard, só pode ser compreendida quando se olha para trás, embora devesse ser vivida olhando para a frente — ou seja, para alguma coisa que não existe».

LER Outubro 2013 © Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)

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