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Foto do escritorFilipa Melo

Chimamanda Ngozi Adichie | A sujar as mãos


Chimamanda Ngozi Adichie confirma-se como a nova estrela da literatura africana, num romance sobre raça, amor, identidade e penteados. Americanah é um retrato do mundo de Ifemelu, estudante emigrante nigeriana que cria um bloque anónimo (inteligentíssimo e hilariante) sobre as questões da raça nos EUA, antes de decidir regressar ao país natal e a um primeiro amor. Após o sucesso de Meio Sol Amarelo (Orange Prize 2007; a adaptação ao cinema estreou há pouco no Festival de Cinema de Toronto), Chimamanda Ngozi Adichie confirma o vaticínio da revista New Yorker, que a colocou entre os 20 mais importantes escritores actuais na casa dos 40 anos. Muito segura de si e talentosa, a escritora nigeriana usa a ficção realista e a ironia como alertas provocatórios contra os preconceitos raciais e em defesa da condição feminina.

Os livros garantem-lhe a afirmação da sua identidade pessoal?

Não creio, mas Proust também não acertou quando disse que «o eu que escreve os livros é diferente do eu que vive no mundo». A verdade está algures no meio; este romance tem uma parte que é de origem biográfica, e outra, que não o é de todo. Tenho imenso para dizer e quero mudar o mundo, mas, por outro lado, sou uma pessoa muito privada.

Atribui-se à sua ficção uma forte mensagem política, porque aborda temas fracturantes: a raça, África, a Nigéria, a emigração, a condição feminina. Não teme que isso ofusque a apreciação estética?

A arte está sempre impregnada de história e de política. Há escritores que tentam contrariá-lo, mas é impossível separar estas dimensões. Eu faço ficção realista, logo, escrevo também sobre o modo como as nossas vidas são afectadas por decisões tomadas por alguém, algures. Para mim, contar histórias é conjugar estética com política e com muitas outras coisas que se fundem e, depois, só podem ser avaliadas em conjunto. Ser escritor significa estar sempre um pouco à parte. Eu sinto-o desde criança. Mas, para escrever, temos de sujar as mãos. Sobretudo se queremos tratar da realidade, e não criar meras fantasias.

Entramos no mundo interno das suas personagens através de pequenos detalhes privados, mas, ao mesmo tempo, triviais…

Demasiada interioridade cansa-me. Gosto de livros que nos fazem mergulhar por completo na vida das personagens. É por isso que Dickens ou os realistas russos me interessam muito mais do que os autores contemporâneos.

No caso de Americanah, para falar de identidade e questões raciais, explora a relação com os cabelos encarapinhados ou o cenário de um cabeleireiro num subúrbio de Princeton. E é como se a noção de raça surgisse do exterior para o interior.

A raça é definida pelo aspecto físico. Não tem nada a ver com biologia: é uma questão sociológica. Aprende-se através do comportamento dos outros em relação a nós. O meu irmão mais novo tem a pele muito clara. Temos os mesmos pais, mas, por exemplo na África do Sul, eu seria «negra» e ele «coloured» (de origem mista). Ou seja, a raça é algo que não se escolhe: é-nos imposta. Isso é evidente nos EUA. Ifemelu escreve-o no blogue: a raça importa por causa do racismo – que, por sinal, é fortíssimo dos afro-americanos para com os imigrantes africanos.

Como é que o livro foi recebido na Nigéria?

Em Lagos [cidade-cenário do romance e residência de Adichie], é vendido até nas ruas, junto aos carros: «Americanah!» Houve muita gente que se identificou e o achou muito divertido.

E nos EUA?

Deve haver muita gente que o odeia e se pergunta: «Como é que ela se atreve a escrever sobre os nossos problemas?» Os americanos não gostam de falar sobre raça. Mas, ok, eu não tenho de ser amada por toda a gente…

Também deve haver muitos americanos, brancos e negros, que riram à gargalhada…

Sim, a ironia é uma arma importante.

Ifemelu diz que, para muita gente, Obama não é negro: «é birracial, multirracial, preto-e-branco, tudo menos apenas negro». A questão racial tem determinado o desempenho do presidente?

O Congresso tem-lhe dificultado cem vezes mais a vida e com a única intenção de o deitar abaixo. É claro que a questão da raça é crucial. À parte Bill Clinton, a América nunca havia tido um presidente tão inteligente, tão consciencioso, tão humano, tão esforçado. Eu gostava que ele fosse menos simpático com toda a gente, porque é bem mais importante ser-se verdadeiro do que amado. Obama é a prova de que os negros na América têm sempre que provar as suas capacidades não sei quantas vezes mais do que os outros.

Na verdade, Ifemelu é também alguém que se sente de uma maneira «por dentro» e é tomada por outra, diferente, «por fora». A tia Uzu diz-lhe: «Limita-te a ser tu mesma.» E ela responde: «Como é que posso ser só eu mesma? O que quer isso dizer?»

Eu sinto-me segura em qualquer parte do mundo porque estou totalmente enraizada na minha família e na Nigéria, um país que eu amo imenso e em cujo futuro eu acredito. Depois de viver 13 anos nos EUA, Ifemelu decide regressar porque lhe falta alguma coisa. O romance é sobre essa noção de casa e sobre como nos tornamos diferentes em diferentes locais. É também sobre o amor e sobre mulheres que traem as expectativas de género: rejeitam os modelos tradicionais, não querem competir para conquistar os homens ou manipulá-los… Se calhar, é por isso que muitas leitoras, sobretudo as africanas, não gostam de Ifemelu. E é por isso que eu a adoro.

SOL 04/10/2013 © Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)

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