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Nos contos de Isaac Babel, o virtuosismo exuberante enraiza-se na esquecida cultura iídiche. Nos anos 50, a frase em iídiche podia ser escutada nas ruas de Londres ou de Nova Iorque onde se haviam instalado famílias judias emigradas da Polónia, Lituânia, Hungria, Roménia, Rússia ou Ucrânia, durante a Segunda Guerra: «Pssst! Bist a yid?» (És judeu?) Pronunciavam-na em tom baixo os mynian-shleppers, responsáveis por juntar a mynian, o quórum ritual de dez adultos necessário para se iniciar o serviço da manhã na sinagoga. Remanescia nesta pergunta a força da união de uma comunidade através de uma língua nascida no século X da mistura de vários dialectos urbanos alemães (com contribuições do francês, do eslavo, do hebreu e do aramaico) e com onze milhões de falantes antes das dizimações nazis e soviéticas. O iídiche (denominado zhárgon antes do final do século XIX) surgira como jargão oral de judeus comuns e tornara-se uma língua de exílio, «especialmente eficaz para expressar sátira, cinismo, familiaridade, abuso, sentimentalismo, resignação e um sentido elevado de ironia e para colocar as pessoas no seu devido lugar e os acontecimentos sob uma melhor perspectiva: [significava] toda a bagagem verbal defensiva de que uma nação involuntariamente migratória com certeza necessitava quando se deslocava para um próximo refúgio temporário.» (Cynthia Ozic, New Yorker, Março 1988). Após a intervenção de figuras como o escritor Sholom Aleichem (1859-1916), o iídiche ganhara entretanto uma reputação intelectual. Mas mantivera a sua função de barreira linguística e ideológica face aos judeus assimilados e de muro protetor contra os cânones gentios, exceção feita para as obras de Aleichem e, mais tarde, de Isaac Bashevis Singer, difundidas e lidas entre não-judeus, e para o trabalho de dois autores falantes de iídiche e impregnados da cultura iídiche, mas que optaram por escrever em russo: Ilya Ilf e Isaac Babel. É na obra deste último, em fusão com um compromisso específico com a Rússia e em abertura para a expressão modernista, que a frase ainda ecoa em rodapé: «Pssst! Bist a yid?»
Para encontrar uma explicação para a Revolução Russa, Bertrand Russel propunha o seguinte: «Se se questionar sobre como é que as personagens de Dostoiévski deveriam ser governadas, então, perceberá.» No caso da leitura da obra fragmentária de Isaac Babel (1894-1940), ela revela uma parte importante do enigma da articulação da autoconsciência judia pelas suas raízes na Europa dos «Ostjuden», os judeus de leste, não assimilados e falantes de iídiche. Segundo a tradutora, Nailia Baldé, a colectânea Contos Escolhidos, recém-editada pela Relógio d’Água, apresenta um mestre da narrativa curta, autor de uma autêntica língua de Babel (em «Contos de Odessa», um russo salpicado pela influência do ucraniano, do iídiche, do moldavo, do francês, do hebraico antigo, entre outros idiomas), com um estilo «sóbrio e elíptico» que se distingue «pelo tom irónico e humorístico marcado de repetições, gradações, comparações, metáforas e imagens muitas vezes inesperadas e surpreendentes». Em destaque, uma economia literária rigorosa (Bloom). Konstantin Paustovski, grande amigo do escritor, defendia que «um conto deve ter a precisão de um comunicado militar ou de um cheque bancário», uma lição decorrente de outra máxima, esta, de Isaac Babel: «A linguagem torna-se o mais clara e forte possível, não quando já não conseguimos acrescentar uma frase, mas, sim, quando já não conseguimos retirar nenhuma.»
Bênia Krik diz: «Aconteceu um erro enorme, tia Pêcia. Então, não foi errado por parte de Nosso Senhor pôr os judeus na Rússia, pra eles sofrerem que nem no Inferno? Haveria algum mal em pôr os judeus na Suíça, rodeados de lagos de primeira categoria, a respirar o ar das montanhas e cheios de franceses à volta? Todos cometem erros, até Deus Nosso Senhor.» Em Contos de Odessa, Bênia é o Rei dos lendários bandidos do gueto judaico de Moldavanska, onde a vida abarrota «de pimpolhos vorazes, de roupas estendidas e de noites de núpcias, cheias de chique do subúrbio e do ímpeto insaciável dos soldados». A cidade é Odessa (hoje ucraniana), a mais judia das grandes cidades do império russo e, segundo Babel, o único sítio da Rússia que poderia ter gerado um Guy de Maupassant (a mais forte inspiração literária do escritor, a par de Máximo Gorki, seu mentor literário). A Odessa natal de Babel por ele recriada de forma expressionista (tão indestrinçáveis os dois como o são James Joyce e Dublin) é o espaço onde o carisma da violência e o jogo contraditório da vida se exprimem pela mais espiritual e espirituosa ironia iídiche, essa espécie de fala de trazer por casa, «na qual Deus, como outros membros da família, se mostra ternamente informal» (Cynthia Ozic).
Isaac Babel, filho de um comerciante de roupas em segunda mão e de uma judia moldava, nascido em Moldavanska, onde testemunhou os pogroms de 1905, acreditou que a Revolução de Outubro ditaria o fim das perseguições antissemitas no regime czarista. Em 1920, na Campanha da Polónia, combatendo nas fileiras cossacas do Exército Vermelho, recolheu material para Exército de Cavalaria, onde a crueldade da guerra é descrita com a mesma extravagância com que, pouco mais tarde, descreverá o submundo judeu de Odessa. Em 1929-30, em choque com a fome brutal provocada pela colectivização forçada na Ucrânia, Babel diz: «A revolução morreu.» Proscrito pelos pares, que o acusam de preferir o silêncio ao realismo socialista, Babel torna-se maldito. Só nos anos 90 se saberá que, na manhã de 27 de Janeiro de 1940, aos 45 anos e após oito meses de prisão e interrogatório, Isaac Babel declara, antes de ser fuzilado e lançado numa vala comum: «Estou inocente. Nunca fui um espião. Nunca apoiei qualquer ação contra a União Soviética. Peço apenas uma coisa: deixem-me terminar a minha obra.» Babel será uma das mais distintas vítimas literárias de Estaline, um inventor do modernismo (a par de Kafka) ou, como defende Harold Bloom, um dos primeiros autores antissemitas. Para quem lê os seus contos admiráveis, ele é a voz que (ainda que também herdeira do simbolismo russo) regista uma raiz perdida da cultura europeia, conjugação única de pathos e humor.
Talvez o extraordinário registo das memórias de infância e adolescência («Contos Dispersos») de Babel seja a expressão máxima da sua melancolia irónica e sem solução, do seu desajuste de exilado, da sua «honestidade fatal» (John Updike). «Não tenho imaginação. Não consigo inventar. Sem conhecer tudo, até à última veia, não consigo escrever. O meu motto é a autenticidade», disse. Impressionava-o que na literatura russa não existisse uma «verdadeira, límpida e luminosa descrição do Sol». Entre tantos outros exemplos, nos seus contos, o grande astro está «pendurado no céu como a língua cor-de-rosa de um cão sedento» ou lança-se «em flecha para as alturas e [põe]-se a girar como uma taça escarlate na ponta de uma lança». O Sol, as estrelas, Deus, os homens, o quotidiano, a violência, a tudo Babel, o yid, assiste, como que em deslocação para um qualquer refúgio temporário.
Contos Escolhidos, Isaac Babel, Relógio d’Água, trad. e notas de Nailia Baldé, 167 págs.
LER/ Abril 2012 © Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)
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