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Foto do escritorFilipa Melo

Jean-Jacques Rousseau | Sr. Paradoxo

Trezentos anos após o seu nascimento, Jean-Jacques Rousseau permanece um dos mais controversos contribuidores da grande história das ideias. Terá ele sido um abnegado filantropo ou um narciso ressabiado? Um libertário democrata ou um potencial totalitarista? Com as comemorações, renasce o debate sobre a importância e atualidade dos pensamentos do cidadão de Genebra.

«Nasci quase morto.» Ao ver pela primeira vez a luz do dia, a 28 de Junho de 1712, Jean-Jacques Rousseau provoca a morte da mãe (Suzanne Bernard, filha de um relojoeiro) e enfrenta um primeiro combate com a sua própria morte, que o vencerá apenas aos 66 anos, em 1778, vítima de hemorragia. Graças ao desvelo de uma tia, a criança sobrevive, mas permanece sempre no homem uma infantil necessidade de atenção maternal e uma sensação de orfandade e desajuste no contacto com os outros, compensadas ambas por um ímpeto truculento e seguro de si e um grande amor à natureza e à solidão. O pai, Isaac Rousseau, descendente de huguenotes franceses e relojoeiro de profissão, guarda, entre as ferramentas do ofício de alta precisão, «as obras de Tácito, Plutarco e Górcio». É um homem culto, independente, arrebatado e muito pouco convencional. Obrigado a abandonar Genebra devido a uma rixa, abandona também o filho, com quem irá manter um contacto irregular, mas terno.

Jean-Jacques convence-se mais tarde de que o progressivo afastamento por parte do pai se deveu ao facto de este não querer reivindicar junto do filho o direito a também usufruir da pequena herança materna. Na primeira parte das memórias autobiográficas Confissões(edição póstuma em 1782; a segunda parte, em 1789), escreve: «Extraí daí esta grande máxima de moral, talvez a única de utilidade prática, que é a de evitar as situações que põem os nossos deveres em oposição com os nossos interesses, e nos revelam o nosso bem no mal dos outros, convencido de que, em tais situações, mesmo que a elas tragamos um sincero amor da virtude, fraquejamos mais cedo ou mais tarde sem dar por isso, e tornamo-nos injustos e maus nas ações sem deixarmos de ser justos e bons na alma.» Estabelecida como objetivo para todos os atos futuros (e, paradoxalmente, não o impedindo de colocar os cinco filhos na roda em nome da boa educação que não lhes poderia dar; ele, que sempre disse desprezar o dinheiro, mas que assumia ter «uma avareza quase sórdida»), esta máxima, central na ideia futura de «felicidade colectiva», provocaria a perplexidade «aos olhos do público» e, sobretudo, a dos seus «conhecidos».

Rousseau quer manter a bondade e a justiça na alma porque acredita que elas são inatas e não dependentes de Deus. Mas, como fazê-lo? Procurando a virtude, que não se possui de antemão, antes se adquire. Evitando o conflito entre os seus próprios interesses e os interesses dos outros homens, as situações passíveis de corromper o desejo do bem dos outros – a base para O Contrato Social ou Princípios de Direito Político´t﷽﷽﷽﷽﷽﷽﷽﷽reito Polo s e os paradoxos. os razer» de homens comunspressa a chegada dos nossos dias mmais do que isso.»)ificialism. Mais: rejeitando a supremacia das regras e do artificialismo que esmagam a simplicidade e naturalidade originais do homem. Para Rousseau, é neste sentido que a civilização humana, orientada para o progresso através do avanço da ciência e da tecnologia, resultou numa fraude, pervertendo o homem, naturalmente bom e justo, no seu caminho de aperfeiçoamento ao encontro da natureza (escreve, a Voltaire: «se é verdade que todo o progresso humano é pernicioso para a espécie humana, o do espírito e da inteligência, que aumenta o nosso orgulho e multiplica os nossos erros, apressa a chegada dos nossos dias maus»). O conhecimento e a arte apenas trazem proveito ao homem se forem subjugados às necessidades sociais e à moral.a vida﷽﷽﷽﷽ade sociais e penas trazem proveito ao homem se forem subjugados ia visitaridade smorei mais do que isso.»)ificialismà moral Contra a voz da razão e da lógica (acessíveis a poucos), Rousseau enaltece a voz do coração e da consciência (que todos possuem). Em vez dos pré-conceitos, privilegia os exemplos e os paradoxos. Aos salões elegantes e civilizados, aos filósofos «impostores», o pensador genebrino virará as costas, em favor da virtude desafectada, do humanitarismo e da vida campestre. Ao teatro e à hipocrisia social, oporá a solidão e a sinceridade individual.

Em 2012, a obra do autodidata Jean-Jacques Rousseau («Eu estava destinado a ser o rebotalho de todas as profissões»), tão contraditória e tão exaustivamente contraditada, continua a colocar perguntas para as quais ainda não encontrámos (boas) respostas. É inegável que a sua teoria do homem plantou muitas das mais importantes sementes da modernidade. Rousseau estabeleceu o cisma entre as ciências, as «artes» (mecânicas e belas-artes) e a moral e conduziu o homem à divisão entre o sentimento e a razão. Graças a ele, e ao seu intempestivo questionamento das convicções iluministas, a Revolução Francesa consagrou como lema três princípios fundamentais, tão consubstanciais como a identidade das três pessoas da Santíssima Trindade, e ainda hoje em vigor como grande utopia humana: Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Foi com Rousseau, e com Émilio ou da Educação, que a criança deixou de ser vista como um pequeno adulto, para se tornar objeto de atenção e direitos específicos e o centro do processo educacional. É ele quem primeiro elogia a formação no meio familiar e o vínculo materno através da amamentação e quem faz nascer uma relação estreita entre política e educação. Foi Rousseau quem elevou o homem a sujeito da sua própria vontade e, em simultâneo, o condenou à consciência do perpétuo conflito entre as ações e os propósitos morais. Por tudo isto, eis-nos ainda hoje às voltas com o paradoxo Rousseau. É ao cidadão de Genebra (apodo que colocava no frontispício dos seus livros) que podemos agradecer a responsabilização de cada homem como autónomo construtor e legislador da sua vida (raiz da filosofia prática kantiana) e o desenvolvimento deste conceito até à noção de Estado de Direito (cunhada pelo jurista alemão Robert von Mohl, em 1835) e de Liberalismo (enquanto expressão dos direitos individuais e do governo representativo). Mas é também em Rousseau que repudiamos uma justificação racional para a alienação de todos os direitos individuais em nome do direito da sociedade a forçar os homens a serem livres. Da sujeição total a um contrato social como vontade geral, nasce a legitimidade de um Estado omnipotente, ao qual se deve submissão total, terreno fértil para os déspotas absolutos e os totalitaristas.

Pleno homem e cidadão do seu tempo, Jean-Jacques Rousseau previu ele mesmo que o julgariam noutros tempos. Apesar do seu gritante narcisismo e de um neurótico complexo de perseguição, não terá sido capaz de imaginar a que ponto o fariam (Isaiah Berlin, por exemplo, explicita que o mal por ele provocado consiste «em ter iniciado a mitologia do eu verdadeiro, em nome do qual nos é permitido forçar as pessoas» e aponta-o como «um dos mais funestos e formidáveis inimigos da liberdade em toda a história do pensamento moderno»). Nas Confissões, Rousseau prometeu pintar-se «tal como sou», expondo ao mundo os pormenores mais ínfimos de «um destino que não tem exemplo entre os mortais», julgando torná-lo assim um monumento seguro contra os ataques e as desfigurações dos inimigos: «Quero mostrar aos meus semelhantes um homem em toda a verdade da natureza, e esse homem serei eu. […] ouso crer não ser feito como nenhum dos que existem. […] Soe a trombeta do juízo final quando lhe aprouver; irei com este livro na mão apresentar-me ao juiz supremo» [tradução de Fernando Lopes Graça para a única edição disponível de Confissões, da Relógio D’Água, com prefácio de Jorge de Sena]. A si mesmo, Rousseau impunha a tarefa de «ser verdadeiro»; ao leitor, a de «ser justo» («Nunca lhe pedirei mais do que isso»). Se possuía algum defeito, deus nosso, era apenas o de ser… brutalmente honesto e justo consigo mesmo (como pretendeu também em Rousseau juge de Jean-Jacques). Mais uma vez, caiu na espiral contorcida do paradoxo.

Primeiro educado numa escola religiosa, na companhia feliz de um primo e melhor amigo de infância, Jean-Jacques falhou como aprendiz de notário e foi colocado na oficina de um gravador tirano, de onde fugiu, aos 16 anos, para correr mundo. Em Annecy, depois em Chambéry, às portas dos Alpes, acolhe-o a deísta suíça Madame Warens, descendente de uma nobre e antiga família, primeiro e grande amor da sua vida (chamava-lhe «Maman»), fonte da aprendizagem das maneiras de sociedade, da conversão temporária ao catolicismo e do contacto com a filosofia e a música (Rousseau ganha primeiro fama como compositor e, durante muito tempo, vive da transcrição de partituras; assina as 200 entradas da Encyclopédie sobre música, produzidas em apenas três meses, e um muito reputado Dicionário da Música). Pouco mais tarde, em Itália, enquanto lacaio da altiva Madame de Vercellis, Jean-Jacques experimenta pela primeira vez «aquele jogo maligno dos interesses ocultos em que esbarra[rá] toda a vida e que provocou [nele] uma bem natural aversão pela ordem aparente que os gera». Morta a senhora, o rapaz rouba-lhe uma fita velha. Acusado pelo furto, incrimina a cozinheira. Rousseau garante que, quarenta anos depois, a lembrança deste episódio e a necessidade de repor a justa verdade foram o principal motor para escrever as Confissões. Em contraponto à obra homónima de Santo Agostinho, estas irão abrir portas para a secularização da escrita de memórias, como gesto puramente público, terapêutico ou literário.




Jorge de Sena aponta uma questão fundamental: «O que choca, em Rousseau, é a contraditória complacência consigo mesmo e as suas recordações e o tom perturbado e perturbador em que estas são evocadas.» Salientando o carácter obsessivo da narração de Confissões, Sena acha-o chocante porque aquela é «uma obra-prima indecisa entre o documento e a arte». Disfarçado sob a ambiguidade estética, o livro está carregado de «ilusões moralistas». «A hipocrisia de Rousseau é a homenagem do seu individualismo, da sua sensibilidade, do seu anseio de ser ele mesmo único e irrepetível, aos preconceitos legalistas e moralistas da sociedade burguesa [e, acrescente-se, da sociedade do espetáculo] que ele anunciava.» Rousseau, com a sua retórica persistente e a sua suposta nudez confessional, a sua conjugação explosiva de criatividade e narcisismo, lega-nos o problema da confusão entre a sinceridade estética e a sinceridade do indivíduo. Edmund Burke repudia-o em particular por essa «nova espécie de glória» que ele conquista por trazer à luz «vícios obscuros e vulgares» que sabemos que muitas vezes afectam «até os talentos mais eminentes». Para Sena, Confissões «é um grande livro irritante e comovente, atraente e repulsivo, em que a chateza e a profundidade estão indissoluvelmente ligadas. […] É a história dolorosa de uma ascensão para a genialidade. […] O anseio de justificação de uma vida pela mesma vida, a fúria de impor aos outros a própria personalidade, a inquietação desesperada do homem que ascende socialmente pelo próprio mérito mas nunca adquire um statusdefinido — a tudo isso trouxe Rousseau uma coloração nova.»

Rousseau, que sempre foi pobre e descendia «com todo o prazer» de homens comuns, mantém toda a vida um sublimado complexo de classe; não o superará nem com a amizade dos enciclopedistas e a plena integração nos salões parisienses, nem com a fama e glória que o público lhe devota desde os 37 anos de idade e o ensaio Discurso sobre os efeitos morais das Artes e das Ciências (primeiro prémio num concurso da Academia de Dijon e resultado de uma «inspiração súbita» numa tarde quente de Outubro de 1749, no caminho para Vincennes, onde ia visitar o amigo Diderot, preso por ter violado a censura). Ao contrário de Voltaire, que também não possuía ascendência nobre, Jean-Jacques jamais pretende ascender socialmente ou conquistar a unanimidade: «Nada me pareceu maior e mais belo do que ser livre e virtuoso, acima da fortuna e da opinião, e bastarmo-nos a nós mesmos.» O puritanismo original e um apego sempre presente aos oprimidos molda a sua observação crítica do mundo e fá-lo decidir-se a quebrar as amarras que o prendem à vida em sociedade. Rompe com os amigos. Larga os dourados e as meias brancas, põe uma peruca redonda, depõe a espada e vende o relógio. Instala-se numa pequena aldeia e aspira a ser um camponês anónimo, dependente apenas do caderno branco e do lápis que levava sempre na algibeira para longos passeios meditativos. De ocupação em ocupação, de mulher em mulher, Rousseau repudiara as convenções. Nenhum como ele vivera todos os cambiantes de categoria social. Ele é aquele que experimenta, depois recua, assiste de longe, e vê. Nada como a filosofia, ligando-o ao essencial da religião, o «havia libertado daquela moxinifada de formulazinhas com que os homens a obscurecem». Só no encontro com a natureza (aos 65 anos, dedica-se à Botânica), Jean-Jacques Rousseau se torna verdadeiramente livre, o narrador pacificado dos incompletos Devaneios de um Caminhante Solitário (antecedente remoto do trabalhador no gozo de férias pagas ou da reforma).

O trabalho de interpretação da álgebra iluminista e dos paradoxos radicais e desestabilizadores do pensamento de Rousseau começa a ser feito ainda em vida do autor, mas excede-a num desentendimento sem remédio. Os enciclopedistas não lhe perdoam o desprezo pelo luxo («essa tão necessária coisa», Voltaire) e pelas ideias de progresso, refinamento e liberdade que preconizam. Os românticos recuperam-no na defesa de que o homem deve viver não só pela razão, mas pelo instinto e pela emoção. O sonho americano encontra fundamentos na sua confiança na meritocracia. As suas reticências quanto à civilização cosmopolita servirão tão bem os habitantes das periferias urbanas, os ambientalistas ou os adeptos de um êxodo para o campo. A filosofia plástica de Rousseau serve todos e nenhum por completo, sendo o seu nome mais popularmente associado a mitos e a lugares-comuns. Entre eles, destaquem-se o conceito de Bom Selvagem e a defesa do primitivismo ou a leitura incompleta da frase «O homem nasceu livre e, todavia, por toda a parte se encontra a ferros» como uma espécie de apelo ao anarquismo — quando o pensador pretendeu tão só sustentar a passagem do estado de natureza ao estado social, do poder físico ao poder moral, ou seja, legitimar as leis e a subordinação política: «O que o homem perde pelo contrato social é a sua liberdade natural e um direito ilimitado a tudo aquilo que lhe é necessário; o que ele ganha é a liberdade civil [limitada pela convencionada vontade geral] e a propriedade de tudo aquilo que possui.»

Jean-Jacques Rousseau, cidadão de Genebra (como das idealizadas Roma ou Atenas), J.J., autor mais de um diagnóstico do que de uma reforma radical, mantém-se hoje como o filósofo mais enigmático do século XVIII. Nele, como resume Laurence Mall (Magazine Littéraire), «as máquinas de fazer sonhar são também máquinas de fazer pensar, e máquinas de guerra». A sua obra permanece «um vasto terreno de demolição» e Rousseau, paradoxalmente capaz de «lirismo político» e «emoção filosófica», criador de um «sonho antropológico» e de «uma reflexão sensivelmente universal», persiste sendo aquilo que sempre quis ser: um homem verdadeiramente singular.

LER Junho 2014 © Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)

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