Da arte de morrer
Chama-se Livro Tibetano dos Mortos e é um tesouro escondido do mundo durante mais de mil anos. Um guia sobre a vida e a morte, centrado em preceitos de instrução da consciência para a transformação e a iluminação. Em 2005, a Orient Foundation patrocinou a edição britânica da primeira tradução na íntegra do seu texto original. Tomando-a por base, a editora Ésquilo disponibiliza agora em português esta que é, a par de Divina Comédia de Dante, uma das mais fundamentais obras sobre a morte.
Para se perceber a máxima importância deste acontecimento na história da edição mundial, e portuguesa, é preciso relembrar uma longa história. Primeiro, numa aldeia indiana e algures entre os séculos VI e IV a.C., Siddhartha Gautama, o Buda primordial, sentou-se em meditação debaixo de uma figueira e recebeu revelações sobre o ciclo das existências e da morte. As palavras que depois difundiu oralmente, e nunca por escrito, fundaram a filosofia budista.
Nos séculos seguintes, esses ensinamentos foram compilados em tratados e escrituras canónicas na Índia, depois em outras regiões da Ásia, sustentando diversas escolas. Ao Tibete, eles chegaram sobretudo no século VIII d.C. e foram, na escola Nyingma-pa (a da Antiga Tradução), transmitidos por gerações de monges, através de uma longa linhagem de preceitos orais. Padmasambhava, o mais importante desses grandes mestres e um dos pais do esoterismo, decidiu ocultar ou enterrar muitos daqueles “tesouros-ensinamentos” sob formas telepáticas ou crípticas para que eles viessem a ser revelados apenas nos momentos exactos em que pudessem ser apreendidos na sua intenção e luz originais. No século XIV, aos 15 anos, Karma Lingpa, um yogi da linhagem directa de descobridores de tesouros, descobriu na colina de Gampodar uma das essências do cânone budista tibetano: os textos Bardo Thodol–Grande Libertação pela Escuta nos Estados Intermédios, referidos no mundo exterior ao Tibete como Livro Tibetano dos Mortos.
Dos doze capítulos da compilação original, apenas dois eram até agora conhecidos no Ocidente, na tradução de Evans Wentz, de 1927. Na época, a sua divulgação teve um impacto notável, influenciando nomeadamente as teorias de Carl Jung. Com prefácio do Dalai Lama e inclusão de mais dois capítulos adicionais, a edição integral hoje disponível constitui também a revelação da grande beleza estética e lírica de um tesouro de descrições dos estados anteriores e posteriores à morte. Nele se consumam transmissões milenares de ensinamentos por mestres budistas moribundos. Nele se instruem preceitos de transferência da consciência (Phowa), a principal prática budista tibetana. Para os não praticantes, esta é, a par do Livro Egípcio dos Mortos ou do chinês Tao Te King, uma viagem ímpar até à possibilidade de transformação da vida e da morte.
Livro Tibetano dos Mortos, Ésquilo, 576 págs.
SOL/ 02-12-2006 © Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)
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