Sonho, logo existo
O mais provável é que cada um de nós, a dado passo, sonhe com a sua própria morte ou efabule a assistência para o seu funeral. E talvez exista mesmo um ligação qualquer entre este tipo de sonho e um desejo profundo de término da encenação que todos fazemos de nós mesmos em vida. «Senhora Oráculo», de 1976, terceiro romance de Margaret Atwood, oferece uma muito interessante reflexão sobre o tema, complementada pelo estilo ágil, riquíssimo, desta talentosa ficcionista e poetisa canadiana (n. 1939). Através da protagonista Joan Foster, Atwood explora as noções de auto-alienação e dissimulação, temas-chave nas suas obras.
Joan passou a vida a esconder dos outros algumas das facetas mais importantes da sua vida: o passado de criança obesa, a violenta relação com a mãe, a autoria de romances gótico-românticos (sob o pseudónimo de Louisa K Delacourt) ou a relação extra-conjugal com Paul, um conde polaco. No início de «Senhora Oráculo» (título do livro de poesia feminista que acaba de publicar), após simular o seu próprio suicídio, refugia-se numa casa de praia na costa italiana. Ali, assistiremos ao quotidiano da fuga de Joan à sua entidade passada, entremeado com flashbacks em que ela a revisita. Algures entre o psicologismo e o realismo, Atwood apresenta e move a sua personagem como uma marioneta de si mesma, numa viagem da memória com tanto de trágico como de cómico ou lírico. Como uma vez afirmou à BBC, interessa-lhe o facto de que «as nossas memórias são mais construídas e editadas por cada um de nós do que queremos aceitar». Cada indivíduo é uma espécie de ficcionista de si mesmo.
Logo após a estreia, em 1969, com «A Mulher Comestível», Atwood entrou para a galeria das maiores autoras daquilo a que os americanos chamam ‘chik lit’: uma literatura feminista pela revelação da vida psicológica secreta (das cumplicidades, manipulações, ‘crueldades’ e fragilidades) das mulheres na casa dos trinta e quarenta. Atwood, várias vezes nomeada para o Booker Prize (conquistado em 2000, com «O Assassino Cego»), aguarda ainda, também em Portugal, o reconhecimento merecido para a inteligência acutilante e a ímpar capacidade imagética e poética da sua prosa. «Senhora Oráculo» é uma boa porta de entrada no universo atwoodiano, ainda que urja a reedição das obras-primas «Olho de Gato» e «Crónica de uma Serva».
Senhora Oráculo, Margaret Atwood, Bertrand, 352 págs.
SOL/ 14-08-2009 © Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)
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