Em criança, o capitão turinense Simoni Simonini aprendeu com o avô a reconhecer um judeu, pelos «olhos que te espiam, falsos ao ponto de te tornar lívido, aqueles sorrisos viscosos, aqueles lábios de hiena levantados sobre os dentes, aqueles olhares pesados, infectos, embrutecidos, aquelas pregas entre o nariz e o lábio sempre inquietas, escavadas pelo ódio, aquele nariz deles como o grande bico de um pássaro austral…» Durante anos, sonhou com o hebreu vaidoso, ignorante, cúpido, ingrato, insolente, imundo, gorduroso, imperioso, maledicente e adúltero «por cio irrefreável». Em 1897, tem 67 anos e há 35 que possui uma disfarçada oficina de tabelião falsário em Paris. A sua vida (passado, presente e futuro) constitui um mistério. Comendo como se se masturbasse, reconhecendo-se como «alguém dotado de uma inteligência menos do que medíocre», ele será, nas palavras de Umberto Eco, «o homem mais odioso do mundo». É ele o grande protagonista e a «única personagem inventada» do enredo d’O Cemitério de Praga, o mais recente, e sexto, romance do escritor, filósofo, semiólogo, bibliófilo (possui cerca de 50 mil livros) e medievalista piemontês, hoje com 79 anos.
A narração decorre em 1897, a três vozes, grafadas de modo diferente: a do narrador que encontra e anota o testemunho que iremos ler, a de Simonini e a do abade Dalla Piccola. Eco homenageia o «texto aberto» e brinca com os vários níveis de narração e identidades, com a ironia intertextual, a «metanarratividade elevada ao cubo», o modo «como o texto prevê o leitor», como tão bem os explicou em ensaios como os de Sobre Literatura ou Leitura do Texto Literário. Prepare-se, portanto, para uma vertiginosa incursão no século XIX e, sobretudo, no mais importante trabalho de Simonini: a falsificação das actas de uma reunião nocturna ocorrida no cemitério de Praga entre os anciãos rabinos das 12 tribos de Israel, destinada a traçar o domínio mundial pelos judeus. Deste documento falso nascerão os históricos Os Protocolos dos Sábios de Sião (já abordados em Seis Passeios Pelos Bosques da Ficção e O Pêndulo de Foucault), texto forjado pela polícia secreta do Czar Nicolau II, depois na base teórica dos ‘pogroms‘ da Rússia czarista e do holocausto nazi.
Já com milhões de cópias vendidas em todo o mundo, O Cemitério de Praga, lançado em Outubro último, colheu severas críticas no L’Osservatore Romano, por «denunciar o antissemitismo, assumindo o papel dos antissemitas». Em resposta, Eco afirmou (L’Espresso): «Trata-se de um romance, que, ao contrário de um ensaio, não apresenta conclusões, mas antes agrega contradições. […] Quis relatar como é que Os Protocolos nasceram a partir de uma acumulação de estereótipos. […] E quis dar um murro no estômago dos leitores.» Um murro musculado por um «caótico» registo ficcional das mais diversas referências culturais, de intrigas políticas, crimes e conspirações de polícias secretas, maçons, carbonários ou jesuítas, muitos «misteriosos e monstruosos» acontecimentos históricos (Ippolito Nevo, Garibaldi e Dreyfus passam por aqui). Tudo embrulhado com o grande fôlego dos romances folhetinescos do século XIX até nas ilustrações que acompanham cada um dos 27 capítulos.
Com a mesma mestria com que aconselhou Como se Faz uma Tese em Ciências Humanas, Eco revela n’O Cemitério de Praga muitos dos instrumentos utilizados por falsários e propagandistas. Uma discussão sobre a dicotomia Verdade-Mentira subjaz ao que lemos, a exemplo daquela que o autor teorizou nos ensaios ilustrados História da Beleza e História do Feio. O tema da força da falsificação é um dos seus predilectos (dedica-lhe um capítulo em Sobre Literatura), tomado como metáfora para a mitificação do real, a História movida por muitos «contos falsos». Daí a urgência de «repor continuamente em dúvida os próprios contos que agora temos por verdadeiros». Aos 79 anos, o escritor não pára de o dizer e de o praticar, das mais variadas formas. Durante a recente Feira Internacional do Livro de Jerusalém, por exemplo, esclareceu que «é o ódio o que comanda o mundo» e que só assim se explica a perene popularidade d’Os Protocolos dos Sábios de Sião, apesar da sua provada impostura. Em Março último, instado a comparar Silvio Berlusconi e Mubarak ou Kadhafi, o escritor respondeu: «Em termos intelectuais, compará-lo-ia antes a Hitler, que também chegou ao poder através do voto livre.» Presente nas marchas pela renúncia do primeiro-ministro italiano, Eco não hesita sequer em apontar o dedo ao «olhar vesgo» dos seus concidadãos apoiantes de Berlusconi.
Umberto Eco perfaz este ano 31 anos como romancista (estreou-se em 1980, com o bestseller O Nome da Rosa). Por isso intitula a sua mais recente colectânea de textos de reflexão Confissões de um Jovem Ficcionista (2011, ainda sem tradução), expondo processos criativos e justificando, mais uma vez, a ausência de conflito entre a reflexão filosófica, a actividade ensaística e a ficção. Ao ler a sua tese de doutoramento, em 1954, um dos examinadores afirmou que ele a tinha escrito «como um romance policial». Uma irreprimível vontade de narrar sobrepôs-se sempre a tudo. Na vida de Eco, como no enredo de O Cemitério de Praga, «o resto desta história é História».
O Cemitério de Praga, Umberto Eco, Gradiva, 559 págs.
SOL/ 29-04-2011 © Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)
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