Corações ao alto, queda livre
Publicado em 1822, foi recebido pelo público com indiferença. Nos prefácios das edições seguintes, o autor, Stendhal (pseudónimo de Henry-Marie Beyle, 1783-1842) dirigiu-o a uns poucos «seres infelizes, amáveis, encantadores, nem hipócritas, nem moralistas». Intitula-se Do Amor e regressa às livrarias pela Relógio D’Água. É um fascinante tratado sobre o amor, esse intricado sentimento experimentado e estudado pelo escritor francês com audácia, minúcia e desejos de lucidez e clareza, como «a única paixão que se paga com uma moeda que ela própria fabrica». Nele, e depois nos romances O Vermelho e o Negro (1830) e A Cartuxa de Parma (1839), mestre Stendhal explora o longo registo realista e de base autobiográfica que o ocupou toda a vida: um «método de conhecimento» (Italo Calvino descreve-o assim, em Porquê Ler os Clássicos?), uma «fisiologia» da natureza das paixões.
Stendhal quis ser o mais matemático e racional possível na abordagem. Por isso, começou pelas classificações do amor: em quatro espécies (amor-paixão, amor-prazer, amor físico e amor vaidade) e sete fases (admiração, prazer, esperança, nascimento do amor, primeira cristalização, aparecimento da dúvida e segunda cristalização). Contudo, o amor é uma espécie de Via Láctea, «um montão brilhante de pequenas estrelas, cada uma das quais muitas vezes é uma nebulosa». Impossível explicá-lo sem derivações, até porque «não há originalidade nem verdade senão nos pormenores». De tratado metódico, Do Amor transforma-se em complexo atlas de «casos particulares sobre o amor», súmula de histórias e reflexões, uma análise comparativa da geografia interior dos indivíduos no contexto social da época.
Escrito aos 38 anos, Do Amor nasce do arrebatamento apaixonado, e falhado, de Henry (antes ao serviço das tropas napoleónicas) por Métilde, mulher de um oficial polaco, em Milão, entre 1818 e 1819 (W.G. Sebald descreve-o em Vertigens.Impressões,Teorema). Métilde será talvez a Mme. Gherardi de Do Amor, com quem o autor assiste à transformação de um feio galho despido mergulhado nas salinas de Salzburgo num belo ramo coberto de reluzentes diamantes de sal. Para Stendhal, a mesma cristalização ocorre no sujeito enamorado, motivo-chave para esta demonstração de como o amor revela do avesso a beleza, a felicidade e a razão.
Do Amor, Stendhal, Relógio D’Água, 358 págs.
SOL/ 11-12-2009 © Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)
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