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Foto do escritorFilipa Melo

Woody Allen | Pura Anarquia


Aos 71 anos, Allen Stewart Königsberg, o magricela judeu ruivo de Brooklyn que espantava os colegas de escola com truques de cartas e de magia, continua em forma. «Pura Anarquia», agora lançado em Portugal e nos Estados Unidos, é o novo livro de Woody Allen, após mais de 20 anos de silêncio enquanto autor de contos e ensaios de humor. Oito histórias inéditas e 10 antes publicadas na revista «The New Yorker» provam que no centro da sua carreira está a capacidade de produzir textos com indiscutíveis marcas de autor.

Mas de que se compõe o inimitável universo Woody Allen? Antes de mais, é feito de uma curiosíssima conjugação entre uma imaginação e um raciocínio flamejantes, a prática de psicanálise (deitou-se durante 30 anos no divã) e um particular questionamento crítico do mundo enraizado no judaísmo hassídico (os avós eram judeus emigrados da Europa Central). Desde o início, Woody virou tudo do avesso a partir da palavra. Através do uso musculado da linguagem, explorou o choque entre características e realidades opostas ou discrepantes. Fê-lo também consigo mesmo, forjando-se como personagem: fisicamente franzino e socialmente inapto, neurótico, fóbico, mergulhado até ao tutano em vastas referências culturais e cosmopolitas. Nasceu assim um humor depressivo cerebral que, mesmo quando é redundante e repetitivo, não deixa de surpreender.

Grande parte dos textos de «Pura Anarquia» foram escritos para o formato revista ou a partir de pequenas notícias de jornal. É o caso do delirante «Que letal se tornou o seu sorriso, minha doce amiga», uma história de detectives imaginada a partir de uma breve do «New York Times» que relatava o valor «snob» de 220 mil dólares alcançado em 2005 por um quilo e meio de trufa branca vendida em leilão. Woody pega na realidade e contorce-a até fazer sair dela uma refinada sátira à vida contemporânea. O resultado é brilhante também em contos como «A Rejeição» (sobre um casal que vê recusada a entrada do filho no melhor infantário de Manhatan e acaba como sem-abrigo) ou «Sam, fizeste as calças demasiado bem-cheirosas» (paródia à febre do vestuário «hightech», com fatos que cheiram a porco cozinhado duas vezes ou permitem recarregar a bateria do telemóvel).

O humor de Woody Allen nunca é chão ou forçado porque nasce da fonte inesgotável que é o seu ponto de vista original e, sobretudo, crítico e auto-crítico. «Pura Anarquia» está cheio de paródias ao universo do cinema, da filosofia e da literatura, de pérolas como esta: «Não me precipitei a tirar uma conclusão qualquer ‘film-noir’, mas atribuí a ocorrência a um dos milhares de choques naturais de que Shakespeare afirma ser carne herdeira, só não me perguntem qual.»

Às mais comezinhas alusões a consumos e práticas quotidianos são associadas referências intelectuais que, por deslocação, acentuam o burlesco. Ali, Dionísio comeria montes de coisas fritas «se não fosse o seu problema de refluxo», aqui, Nietszche teria escrito um livro de dietas como único pensador ocidental capaz de conciliar «Platão com Pritikin [dieta famosa]», acolá Alma Mahler é a bomba sexual de «Fun de Siècle», uma produção da Broadway, ou «a física, tal como um familiar que nos mexe com os nervos, tem as respostas todas».

Escrito para ser saboreado devagar, este “Pura Anarquia» abre o apetite para a reedição, prevista para breve também pela Gradiva, do esgotado «Prosa Completa», que reúne os três livros de humor de Allen: “Para Acabar de Vez com a Cultura”(original de 1971), “Sem Penas” (1975) e “Efeitos Secundários” (1980).

Pura Anarquia, Woody Allen, Gradiva, 153 págs.

SOL/ 04-08-2007 © Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)

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