O fado da China
Zhang Jie descreve três gerações de mulheres, da China feudal à moderna
Em 2004, quando a China foi país-tema convidado no Salão do Livro de Paris, o slogan era: «Uma China eterna, uma China Diversificada, uma China Moderna.» Para uma aproximação às duas primeiras facetas do país, aconselha-se a leitura dos poetas chineses (Uma Antologia de Poesia Chinesa, Assírio & Alvim), de Lu Xun, de Pa Kin ou do Nobel dissidente Gao Xingjiang (A Montanha da Alma, Dom Quixote). Para perceber a China moderna, e à falta de tradução de obras de autores mais novos (por exemplo, Mo Yan, Yu Hua ou Xu Xing), leia-se Zhang Jie (n. 1937). A Gradiva acaba de editar Não Há Palavras (a partir da tradução italiana), épico semi-autobiográfico que cobre todo o século XX.
Apresentado como «o livro de narrativa contemporânea mais premiado da história da República Popular da China», Não Há Palavras narra como um homem (Hu Bingchen, descendente de aristocratas, depois velho dirigente do Partido Comunista) troca a mulher (Bai Fan, veterana da revolução) por uma vinte anos mais nova (Wu Wei, a protagonista), para, duas décadas depois, se divorciar dela e regressar à primeira. Desta história quase banal de amor, ódio e vingança nascem outras personagens que circulam no tempo, da China da guerra do ópio em 1840 (tempo de Mohe, a avó de Wu Wei, filha de um literato) até às lutas entre nacionalistas e comunistas (o da mãe, a mestre-escola Ye Lianzi), à guerra de resistência ao Japão (o do pai, o iletrado Gu Qiushui) e a Mao e à Longa Marcha.
Zhang Jie, jovem dirigente do partido comunista, desterrada para o campo em 1969 e plena Revolução Cultural, afirma-se «uma artista com forte consciência social». O seu olhar sobre a história política e moral dos chineses parte da intimidade de três gerações de mulheres sofridas, que questionam: «Quantas vidas, quanto sangue e quanto suor se desperdiçaram para assinalar toda a passagem de poderes?»
Wu Wei, escritora famosa, acaba louca. Como a avó e a mãe, pretendera «sempre demais dos outros». Essa foi a maldição das três mulheres, o centro dramático de Não Há Palavras, sustentado pelo tom algo passado e sentimental da narração. Entaladas entre a China feudal e a China moderna, as personagens têm apenas uma convicção: «O destino podia mudar ou não? Seja como for, era sempre o fado a decidi-lo.»
Não Há Palavras, Zhang Jie, Gradiva, 290 págs.
Sol/01-10-2010
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)
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